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É
doutrina corrente que Deus sempre dá às suas criaturas — inclusive às
que vivem em condições muito adversas como a heresia e o paganismo — as
condições necessárias para a salvação. Ele o faz por meio da lei
natural, que é impressa em todos os corações. Sendo fiel a essa lei, uma
alma reta pode chegar ao conhecimento de Deus.
Disso temos exemplo num caso de uma menina nascida na África de pais
adoradores do sol, que desde os albores da vida se punha a questão: “Quem criou o mundo e tudo o que existe?”
Por meio dessa lei que habitava no fundo do seu coração, ela praticava
uma religião natural, e chegou ao conhecimento de Deus antes de chegar à
luz da fé sobrenatural.
Trata-se da princesa Chikaba [acima, foto de uma pintura dela como freira dominicana],
nascida nos finais do século XVII e princípios do XVIII na Costa do
Ouro, na África, e falecida como freira contemplativa na Espanha.
Antes de falarmos de sua extraordinária vida — narrada por ela a seu
confessor, Pe. Juan Carlos Paniagua, que a publicou em 1752 —, vamos
fazer, para proveito de nossos leitores, algumas considerações teóricas
sobre essa lei inata que, independente do auxílio da religião, é de
molde a reger todos os atos humanos.
Até os povos mais primitivos obedecem de certa forma a essa lei
Impressa
na alma de todos os mortais, essa mencionada lei coincide com as normas
morais que o homem pode conhecer mediante a mera luz da razão, como
sejam: não matar, não roubar, não cometer adultério, honrar pai e mãe.
Isso ocorre qualquer que seja o estado de vida ou meio em que vive o
homem. Pois, mesmo os povos mais primitivos, obedecem a algumas noções
morais básicas, como a de que é preciso fazer o bem e evitar o mal,
honrar pai e mãe, cultuar a divindade.
Essas
normas não foram impostas por alguém, como determinado chefe ou
cacique, mas inseridas por Deus na própria natureza. Os pagãos mais
civilizados da Antiguidade — os gregos e os romanos — atribuíam-nas a
uma divindade.
Isso se dá mesmo com os povos pagãos mais primitivos: “O
princípio fundamental da Lei natural pode ser conhecido com certeza por
todo homem normal, sendo evidente por si mesmo. O mesmo se diga a
respeito das conclusões imediatas. Quanto às conclusões remotas, embora
sejam por si mesmas acessíveis à razão, podem não ser devidamente
apreendidas por pessoas que vivam em ambientes moralmente pouco
evoluídos, onde a consciência moral esteja embotada pela mediocridade e a
dureza dos corações”. Pelo contrário: “Quem se aplica de
coração sincero à reflexão sobre a vida moral, percebe que o preceito
básico de ‘fazer o bem’ é altamente exigente, implicando em
conseqüências cada vez mais delicadas e magnânimas”.
São Paulo afirma: “Quando
os gentios, que não têm lei (escrita), fazem naturalmente as coisas que
são da lei, esses, não tendo lei, a si mesmos servem de lei, e mostram
que o que a lei ordena está escrito em seus corações, dando-lhes
testemunho a sua própria consciência e seus próprios pensamentos, que os
acusam, se fizerem o mal, ou também os defendem, se fizerem o bem. Isto
ver-se-á naquele dia em que Deus, segundo o meu evangelho, há de julgar
as coisas ocultas dos homens por meio de Jesus Cristo” (Rm 2, 14-16).
Filha de pequenos reis africanos
“Costa
do Ouro” foi o nome dado pelos colonizadores portugueses à costa oeste
do Golfo da Guiné, região que atualmente pertence a Gana. Colonizada
primeiro pelos portugueses em 1482, foi conquistada pelos holandeses em
1598 e depois pelos ingleses em 1871. Tomou o nome de Gana em 1957,
sendo das primeiras colônias africanas a alcançar a independência.
Como dissemos, a pequena Chikaba é um exemplo admirável e patente de
como uma alma fiel à Lei natural impressa em seu coração pode chegar ao
conhecimento de Deus.
Nascida
em 1676 no pequeno reino da Costa do Ouro, ela era a caçula e a mais
inteligente dos quatro filhos dos soberanos da Mina Baixa de Ouro, pelo
que todos julgavam que sucederia ao pai no governo do país.
O
Evangelho não havia ainda penetrado naquela região e, no entanto, desde
o uso da razão a princesa Chikaba deu mostras de uma religiosidade
natural fora do comum. Vendo os campos, as flores, os pássaros, ela se
perguntava, como fazia Santo Tomás de Aquino aos cinco anos de idade,
abismado diante da grandeza da Criação: “Quem rega a terra, mantém a erva fresca, e dá colorido às flores?”.
Certo dia um de seus irmãos levou-a a um rito do culto ao sol, adorado
por sua tribo. Mostrando-lhe o astro-rei em todo o seu esplendor
matutino, disse-lhe: “Vês ali o deus por quem perguntas, e a quem toda terra reverencia?”. Não convencida, a menina respondeu sagazmente: “Mas, quem pôs ali essa estrela? Como é pequena para ser autora de tanta grandeza!”.
Deslumbrados por sua prematura sabedoria, os súditos de seu pai
começaram a considerá-la uma espécie de oráculo divino, e a consultá-la
em suas dúvidas. Contudo, Chikaba fugia para a solidão, a fim de meditar
em todas essas coisas e, de certo modo, prestar ao seu modo um culto ao
verdadeiro Deus, que ainda não conhecia.
Aparece-lhe a Virgem Santíssima
Aos nove anos, chegando junto a uma fonte natural, Chikaba se perguntou: “Quem a pôs aí?”.
Ao levantar os olhos, viu diante de si uma Senhora branca e formosa,
que levava nos braços um Menino branco. Este sujeitava numa das mãos uma
longa fita, e acariciava a cabeça da menina com a outra. Essa visão a
marcou para sempre.
Certo dia, quando seu irmão mais velho lhe expressou o temor de que
seria ela, e não ele, a suceder ao pai, ela o tranqüilizou dizendo: “Sabes que eu não hei de casar nesta Terra com homem algum, mas com um Menino muito branco que conheço?”. Ela já estava enamorada do Menino Deus.
Reviravolta trágica, mas providencial
Foi então que a vida de Chikaba teve uma reviravolta trágica, embora
providencial. Concentrada em suas elucubrações, ela se afastou um dia
até uma praia desconhecida. Nesse momento aportava uma barca proveniente
de um navio espanhol. Um dos seus ocupantes, vendo a menina, capturou-a
para levá-la como escrava.
Ao ver afastar a praia, Chikaba compreendeu que a levavam para sempre
ao desconhecido. Quis então atirar-se às águas, mas nesse momento
apareceu-lhe novamente a bela Senhora branca, que a dissuadiu do que
poderia ter resultado em sua morte.
Os tripulantes do navio, vendo suas jóias e o modo como Chikaba estava
vestida, compreenderam que devia ser alguém de certa relevância entre os
seus. E começaram a tratá-la com mais consideração.
Foi
provavelmente algum sacerdote presente no navio que, vendo a viva
inteligência da menina, começou a instruí-la nas verdades da fé. Chikaba
assimilava sofregamente tudo isso, que vinha de encontro aos seus mais
caros anseios. De tal modo que, atracando o barco em São Tomé para
reabastecimento, ela foi ali batizada com o nome de Teresa. Tinha então
dez anos de idade.
Teresa
Chikaba explicou depois ao seu confessor a felicidade que representou
para ela encontrar por fim resposta a todas suas inquietudes religiosas.
E que isso mitigou muito a dor que sentia ao ver-se separada para
sempre de seus entes queridos.
Na Espanha, confidente da Marquesa de Mancera
Chegando à Espanha, seus captores julgaram que aquela escrava, por sua origem e sua personalidade, merecia viver na corte real de Madri. Consequentemente, ofereceram-na ao rei Carlos II, que a entregou ao Marquês de Mancera [pintura ao lado] para que cuidasse de sua educação religiosa e cívica.
Bem orientada por um diretor espiritual, a adolescente progrediu tanto
na virtude que passou a ser confidente da marquesa. Esta, abandonando as
diversões e os entretenimentos, começou a passar com a escrava muitas
horas diante do Santíssimo Sacramento.
Ora, essa preferência por Chikaba provocou a inveja dos outros
servidores, que começaram a insultá-la e molestá-la, especialmente uma
escrava turca, que tentou mesmo assassiná-la. Atacada por mortal
moléstia, a muçulmana se negava a converter-se. Chikaba, com muita
caridade e tato, conseguiu convencê-la a receber o batismo, após o qual a
turca morreu piedosamente.
Um tio tenta casar-se com ela
Alguns anos depois, apareceu na corte de Carlos II um negro, também de
origem nobre, chamado João Francisco. Este havia sido capturado em seu
país por franceses, e dado a Luís XIV. Quando o Rei-Sol lhe deu a
liberdade, João Francisco foi para a Espanha.
Lá sabendo que uma jovem negra estava com os marqueses de Mancera, quis
conhecê-la, vindo a descobrir que era sua sobrinha.
Teresa teve assim notícias de seus pais e irmãos, alguns deles já
falecidos. E ficou alegremente surpresa ao saber que todos eles tinham
se tornados cristãos.
João Francisco quis casar-se com ela, para voltarem juntos à sua
pátria. Mas Chikaba recusou-se de modo peremptório, pois estava
resolvida a entregar-se inteiramente àquele Menino branco, que já sabia
que era o próprio Menino Jesus. O tio usou de violência e quis levá-la à
força, mas com a intervenção dos marqueses sua tentativa fracassou.
À procura de um convento
Vendo a firme resolução da jovem de entrar num convento, os marqueses
encarregaram o nobre cavaleiro Dom Diego Gamarra de procurar um em Madri
ou nos arredores, que quisesse recebê-la. Apesar das altas
recomendações, todos os conventos se negavam a recebê-la.
Isso constituiu um profundo sofrimento para a jovem. Segundo dizem as Atas do Capítulo Provincial dos Dominicanos, reunidos em Toro em 1749, São Domingos então “a consolou, assegurando-lhe que se cumpririam seus desejos”.
Finalmente, Dom Diego procurou a priora do Convento da Penitência de
São Domingos, em Salamanca, que concordou em receber a postulante. Isso
ocorreu no ano de 1703.
Outra
cruz estava reservada a Teresa: o bispo local, Dom Francisco Calderón
de la Barca, parente do dramaturgo, proibiu que ela ingressasse como
monja de coro, só a recebendo como irmã leiga e servente. Isso
significava que ela não podia compartilhar a vida das outras monjas,
nem, sobretudo, rezar com elas o Ofício Divino. Com espírito de
obediência, ela aceitou essa humilhação.
Aos
poucos as irmãs foram se edificando com a bondade de coração, piedade e
caridade da jovem postulante, mesmo para com aquelas que a tratavam mal
por causa de sua cor.
Ocorreu então a uma das freiras, Irmã Maria Teresa de São Jacinto,
ensinar-lhe a rezar o Ofício Divino segundo o rito dominicano, e outras
orações próprias à Ordem. Isso foi providencial, pois o bispo,
reconhecendo a santidade daquela irmã leiga, não só permitiu que fosse
recebida no Noviciado, mas adiantou sua profissão religiosa.
Desse modo, no dia 29 de junho de 1704, Chikaba, aos 28 anos de idade, converteu-se em Irmã Teresa Juliana de São Domingos. Para reparar sua falta anterior, o próprio bispo quis presidir à profissão solene [ao lado, o documento da profissão solene de fé da Irmã Teresa Chikaba em 1704].
Nesse dia a nova monja teve uma visão de São Domingos, que recebeu seus
votos. Como ela confessou mais tarde, essa foi uma das três ou quatro
vezes que o santo fundador lhe apareceu.
Aos poucos, a virtude dessa santa negra começou a ser conhecida fora do
convento, por suas penitências e seus jejuns. E assim começaram as
visitas ao parlatório, para ter o privilégio de pedir-lhe conselhos e
recomendar-se às suas orações. Teresa passou a ser conhecida
carinhosamente em Salamanca como “A Negrinha”, ou “A Negrinha da
Penitência”.
O
povo atribuía-lhe não só diversas curas, mas também o fato de a cidade
de Salamanca ter-se visto livre dos bombardeios e saques durante a
guerra com Portugal, em 1706. Nessa ocasião, diante da proximidade dos
bombardeios, Teresa havia posto numa das janelas do convento uma imagem
de São Vicente Ferrer como escudo protetor. E recomendou aos habitantes
da cidade que rezassem a ele pedindo proteção.
Transfiguração final
A irmã Teresa Chikaba morreu em odor de santidade no dia 6 de dezembro de 1748, segundo ainda o Capítulo de Toro, “tendo vivido setenta e dois anos sem mancha de pecado mortal”.
Seu biógrafo relata um prodígio que sucedeu nesse momento, e que
assombrou o doutor que a atendia: uma breve transfiguração converteu em
luminosamente branco seu rosto negro.
Os restos mortais da irmã Teresa foram depositados no convento Santa
Maria de las Duenas, em Salamanca e, em 1961, foram guardados num
sepulcro, aberto no claustro daquele histórico monastério, com uma
lápide de mármore negro.
Apesar de que em seu tempo ninguém duvidasse de sua santidade, já
transcorreram mais de 250 anos desde a morte de Teresa Chikaba sem que a
Igreja se tenha ainda pronunciado por meio de sua beatificação e
canonização. O que fazemos votos para que ocorra o quanto antes, para
sua glorificação, de sua raça, de sua terra natal, e de toda a Igreja.
Plinio Maria Solimeo é escritor e colaborador da ABIM
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