24/out/2015,
A PM tem que acabar (por Fernando Horta)
Já há algum tempo a imprensa brasileira vem dando
destaque a dados inaceitáveis advindos do “trabalho” de nossas Polícias
Militares. Veja que não falo que tais dados são uma realidade recente
pois estão em patamares semelhantes, ano após ano, se nosso olhar recair
sobre as periferias urbanas ou sobre grupos socialmente diferenciados
pelo padrão “cor da pele” ou mesmo pela questão econômica. Mais de 93%
dos jovens mortos entre 16 e 17 anos no Brasil são negros e a PM
responde por um significativo percentual destas mortes. O governador de
SP Geraldo Alckmin trancafiou nos porões da burocracia os dados sobre o
trabalho da PM, numa demonstração absoluta de irresponsabilidade e
conivência com a violência e morte de cidadãos brasileiros. Dos dados
que já tinham sido apurados apontam para um índice de letalidade da PM
brasileira da ordem de 1:15,5 (um policial morto para cada 15,5 civis
mortos) quando o padrão internacional é 1:10 e o FBI, por exemplo,
trabalha com a proporção de 1:12. Isto significa dizer que a PM
brasileira está entre as que mais matam no mundo (50% a mais do que o
padrão internacional). Só em São Paulo, até agosto de 2015 a PM tinha
matado oficialmente 500 pessoas. Primeiro, o número por si só é
inaceitável. Em segundo lugar, a estratificação por cor e classe social
destes mortos tornam ainda mais inaceitável o dado. Ainda, como um
fantasma da ditadura sabemos que o número “oficial” é muito menor do que
o real, e nisto a imprensa também vem divulgando diariamente casos
escabrosos de policiais militares falsificando cenas de crime, mudando
causas mortis, ou simplesmente usando o chamado “auto de resistência”
que é uma lei do tempo do período militar que, de forma completamente
inaceitável, dá carta branca para o policial matar, sendo que para isto
precisa apenas afirmar (com um outra testemunha também policial) que o
morto resistiu à prisão. São conhecidas as filmagens de policiais
militares matando à luz do dia comerciantes de rua (os chamados camelôs)
no SE, sem que nada acontecesse. Os casos de artistas mortos com tiros
pelas costas e em seguida tudo ser adulterado para um “auto de
resistência”. Estas coisas que, enquanto aconteciam nas periferias
pobres e negras do nosso país passavam ao largo de qualquer preocupação
midiática, mas com a violência institucional atingindo a parte “de bem”
da sociedade começou a aparecer o aparato assassino de uma polícia que
“faz o seu trabalho”.
É preciso que sejamos justos, a PM faz
excepcionalmente bem o seu trabalho. É preciso, entretanto que se
entenda qual é este trabalho, como ele foi delimitado, sobre quais
princípios ele se alicerça e quais alternativas temos. A Polícia Militar
foi criada por um decreto de 1969, sendo, portanto, herança direta do
período militar recebida sem questionamentos pela constituição de 1988. O
primeiro grande absurdo é a emulação da lógica militar para a vida
civil. O Exército tem função constitucional clara, embora durante a
ditadura militar isto tenha sido subvertido, o exército trabalha com a
dicotomia pátria-inimigo da pátria. Um militar é treinado para prover
defesa de todo um Estado contra indivíduos que, por regra, não merecem
outra ação que não a violência. Neste caso específico, de guerras entre
países, até a segunda guerra mundial as convenções internacionais eram
muito incipientes e pouco aplicadas no sentido de minorar a violência
dos exércitos. Na prática, imperava a ordem do “nós contra eles”, sendo
que isto fazia todo o sentido dado que o “nós” vinha sempre calcado num
nacionalismo exacerbado. O “eles” só passou a ter direitos quando
internacionalmente começou-se a reconhecer que mesmo neste estado de
beligerância total, os homens não poderiam cair na condição de
bestas-feras. Algo acima da condição de “soldados” começou a se formar.
Surge a noção de que somos todos humanos. E todos os humanos são
detentores e um rol de direitos básicos, dentre eles o direito à vida.
Os direitos humanos, tão abominados no Brasil, são fruto de uma luta
civilizatória de mais de 80 anos em que milhões de pessoas tiveram suas
vidas ceifadas por guerras das quais nunca tiveram parte decisória,
intelectiva ou mesmo de aceitação. Hoje, os exércitos modernos, todos
dizem aquiescer ao direito internacional, muito embora tenhamos uma
quantidade significativa de dados e casos para mostrar que nem sempre
isto é verdade. Contudo, a despeito de se discutir a real introjeção das
normas internacionais na lógica dos exércitos nacionais do século XX,
uma coisa é clara: mesmo em instituições milenares como o exército, a
noção de que o “eu” que defendo a pátria posso tudo contra o “ele” que a
ataca vem sendo minorada sabiamente. Somos todos humanos e o “eu” ou o
“ele” são meramente um acaso. Fortuito jogo político, por vezes sórdido,
por vezes lícito, mas que termina sempre nas mortes indiscriminadas de
jovens uniformizados portando bandeiras e armas que se jogam insanamente
contra outros jovens que portam outras bandeiras e armas pela ordem
direta de velhas raposas matreiras que estão lutando por coisas
indizíveis ao público mas reveladas dolorosamente aos historiadores.
A lógica da Polícia Militar nasce replicando uma
situação completamente errônea. Da noção de “nós que defendemos a
pátria” contra “eles que atacam a pátria”, trazida do exército no
adjetivo “militar” nasce a infame lógica do “nós policiais heróis com a
lei ao nosso lado” contra “eles bandidos infames”. Nesta deturpação
completa esquece-se que assim como no Exército “todos somos humanos”,
internamente a um país “todos somos cidadãos” e, exatamente por isto,
temos uma série de direitos a serem assegurados pela polícia. A PM
trabalha com a lógica da negação básica do direito do “bandido”. Sejam
direitos humanos, direitos jurídicos básicos ou mesmo o direito de
cidadania. Isto implica em diversos crimes contra a sociedade. Em
primeiro lugar o policial julga sozinho ou em conluio com colegas de
farda quem deve ou não ser “bandido” raptando totalmente a função
histórica do judiciário. Juízes e advogados passam suas vidas tentando
entender e posicionarem-se neste constante dilema moral que a
culpabilidade, de tal forma que não podemos aceitar que um policial sem
preparação alguma possa se arvorar o direito de julgamento e punição de
qualquer indivíduo que seja. Um policial que mata, rouba da sociedade o
direito de saber porque ele mata e rouba do morto o direito de defesa
que é sagrado na nossa sociedade. É um duplo crime escondido com
falácias e falta de preparo. Um policial que mata é tão “bandido” (para
usar a mesma ótica obtusa) do que o “bandido” que ele mata. São bandidos
de farda que deturpam a função da polícia. Em qualquer país com
instituições fortes, a polícia tem por função GARANTIR os direitos das
pessoas e não subtrai-los de forma covarde, leviana e sem nenhuma razão
ética.
É preciso que acabe a noção de “Polícia Militar” cuja
essência é a repressão, o corporativismo e o rapto de funções sociais
do judiciário, do ministério público e mesmo do executivo. Abundam os
casos a mostrarem que não pode a polícia ser corregedora de si mesma.
Desde tenistas de classe alta, surfistas de classe média até crianças da
periferia têm sido vítimas indiscriminadas das armas fardadas que se
protegem a si mesmas da mesma forma que fazem as milícias ilegais em
morros e periferias. Não há nenhuma diferença.
Há, entretanto, que se verificar outras situações. Em
primeiro lugar, embora não seja função do policial morrer (como era o
dos soldados em guerra) eles estão expostos a este risco e é função do
Estado minora-lo. Seja com melhor treinamento (em média nossos PM passam
de quatro meses a um ano sendo treinados para portar armas, em países
europeus este treinamento chega a ser de cinco anos e nunca menor do que
três), seja melhor aparelhados e conduzidos com serviços de
inteligência e organização. Em última instância, um policial tem o
sagrado direito de matar para defender a sua vida, mas ele precisa ser
treinado para reconhecer uma ameaça efetiva a sua vida e sobre ele deve
pairar a punição como regra pela retirada de quaisquer vidas. Hoje a
regra é a impunidade de tal sorte que policiais militares, matam juízes,
agridem corregedores, são presos com toda a mordomia em
“quartéis-prisões” e mesmo fora de serviço, bêbados, resolvem fazer uso
de suas “prerrogativas” em situações como festas, em praias ou
discussões de trânsito. A impunidade também é herança da ditadura
militar.
O policial ao matar uma pessoa na rua, não faz isto
sozinho. O “soldado” que é mal treinado, mal pago e vive a construção
insana da violência dentro da corporação não é o único culpado pelas
mortes. Seus superiores, os políticos da área de segurança e os
mandatários do executivo devem ser responsabilizados também. Não se pode
treinar uma pessoa para matar, para ser mais monstruosa do que os
monstros que caça e quando ela dá vazão à toda esta violência deixá-la à
própria sorte. O sistema todo está errado. Desde a imunidade
legislativa até a impunidade institucional o resultado é uma polícia que
é campeã de mortes no mundo, que não defende direitos básicos como o
direito à vida e que faz tudo isto recebendo salários de fome. Parece
que trabalham pelo prazer de “imporem-se” violentamente ao restante da
sociedade. Como gangues adolescentes organizadas que sentem prazer neste
processo. Recentemente o governador do Paraná afirmou em áudio vazado
que “PM’s com estudo eram piores porque pensavam”. Obviamente ele teve
suas ordens questionadas pelos que deveriam atender sem pensar
(novamente uma herança da ditadura). Desde que houve o cisma histórico
entre a polícia e comunidade (no Brasil desde a Primeira República),
desde que o policial virou uma “autoridade” acima do bem e do mal
(Período militar) e deixou de ser o “zé”, o “rafa” ou a “gabi” que a
segurança vive o dilema do período militar do “nós” contra “eles”.
Este modelo ultrapassado e ineficaz de polícia não é o
único no mundo. Em realidade, vários outros modelos de polícia têm sido
estudados. Desde os modelos democráticos das polícias nos EUA (que
escolhem seus xerifes e estes são obrigados à prestação de contas) até
os modelos construtivos europeus em que todas as funções de “law
enforcements” estão situadas sob a mesma tutela. De fiscal de trânsito,
passando por guarda de rua, até forças especiais urbanas inserem-se na
mesma carreira, sendo que policiais são acompanhados psicologicamente,
sociologicamente e juridicamente por anos até terem suas promoções
estabelecidas. São polícias que empregam a força para defender
prioritariamente o direito à vida, inclusive daquele que supostamente a
está ameaçando. São modelos de polícias garantistas e não raptoras de
direitos. Polícias urbanas que entendem que todos são “cidadãos” e não é
ela quem define quem são os “bandidos”. Polícias legalistas civis em
que o cidadão é seu chefe maior e não um indivíduo que deve se curvar à
“autoridade” de farda. Estes modelos também não são isentos de erros,
mas os números mostram que são socialmente muito mais efetivas e
legalmente muito mais corretas do que o modelo de polícia militar
brasileiro.
É preciso que se acabe este modelo historicamente
ultrapassado, socialmente ineficaz e legalmente espúrio. É preciso que a
sociedade pare de pensar na inútil dicotomia “homens de bem x
bandidos”. É preciso que restituamos às instituições suas funções
originárias: ao judiciário cabe julgar, ao executivo cabe garantir
direitos e aos nossos jovens cabe viver. Sejam negros ou brancos, sejam
ricos ou pobres.
.oOo.
Fernando Horta é professor, historiador, doutorando em Relações Internacionais UNB.
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